sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Selva de Sílvia



"Puta merda, Ed!"

Na mesma hora em que ela me gritou, arrebentei o dedo na faca. Não consegui nem responder. Fiquei estático, olhando o sangue fresco se misturar com a manteiga, que por sua vez já infiltrava os pequenos buracos do pão de forma meio quente, meio frio. Meio quente, meio frio. Meio quente, meio frio. Ela me gritou de novo. Eu fui. Parei na porta da sala e observei, ainda com o dedo cortado enfiado na boca. Três sensações me invadiam: o arrepio, que a causa era a janela entreaberta; uma cortada no peito, mas eu ainda não sabia o motivo; o sangue sugado, que me provocava quase um surto psicótico.

Ela estava confortavelmente utilizando-se de todo o espaço do sofá, os olhos vidrados na televisão, a cor azul infestando toda a sua face. Demorou ainda alguns segundos para me perceber de esguelha. Quando me viu, fez aquela expressão maravilhosamente assustada e, por um segundo, me esqueci de todos os nossos problemas. Andei vagarosamente e me sentei ao seu lado e acompanhei a televisão.

Eu que nunca gostei de ir à missa agora sentia até um aperto no peito e sem querer meu subconsciente pedia piedade pra Deus e pra todas aquelas pessoas. E pedia piedade pra mim também, ainda segurando o dedo ensanguentado, sentado do lado daquela gostosa que me namorava há três anos e eu não sabia bem o porque de ela não largar o osso. Lentamente, nossos dois corpos, aterrizados na tragédia que a televisão nos contava, os olhos derretendo como manteiga, os braços se entranhando um no outro, o mundo caindo e a gravidade falhando aos nossos pés. E a TV chiava, chiava, chiava...

"Tá vendo, Ed?"

Ela enfia a mão na minha perna. Ainda nem se deu conta da sujeira que o sangue havia feito. Marcas na calça, na blusa, na boca, líquido viscoso, gosto de ferro e eu com o dedo metido na boca. E a Sílvia agarrada na minha perna. Como um quebra-cabeça defeituoso. O pescoço dela reto, entretido, os olhos abertos e arregalados. Eu com os ombros quase em noventa graus, me deliciando em seus detalhes, observando cada um de seus poros malignos, cheios de vontade e a única certeza; a maior das certezas; um tesão imensurável. O mundo estava acabando, as pessoas estavam morrendo e a única coisa que eu queria era trepar com Sílvia.