segunda-feira, 19 de setembro de 2016

é que é passageiro, mas não acaba nunca

É que sempre me faltou alguma coisa. Passei tanto tempo escrevendo sobre outras pessoas - possivelmente imaginárias ou não - que percebo agora, no auge da vida, que nunca escrevi sobre mim. É que eu sou jovem, bebo demais, fumo demais, tenho muitos amigos incompreensíveis e um punhado de problemas familiares: sou um clichê. Mas qual o problema de ser um clichê num mundo que é redondo, em estruturas sociais depreciativas, convivendo harmonicamente com os tios evangélicos que usam muito protetor solar e têm poucos sofrimentos. Deus também cuidou de mim - mas só por alguns minutos. Depois se cansou e foi embora.

Minha primeira namorada me contou esses dias que daqui a pouco serão dez anos desde que a gente se conheceu e se apaixonou. Me anestesiei toda. Construí relações de dez anos, exceto as obrigatórias que são o vizinho, filho da amiga da sua mãe e o primo mais velho. Dez anos. E eu ainda no começo dessa segunda década, que parece que me arrancou as costas fora e desnorteou meus quadris: ando tendo muita ressaca e gastrite; ando chorando menos por amor; como salada dia sim e dia não. Tudo vai bem até que vai mal, percebi que agora repito mais citações, não ando descalço, fiquei mais cínica.

Foi esse ano que desaprendi a dormir. Sempre me gabei de um sono saudável, pelo menos oito horas por noite, às dez apagada. Agora nem por decreto. Também com meus tios evangélicos aprendi que, caso algo ruim aconteça na sua vida, o que vem pela frente é bem pior: parece que é pecado ser lésbica. Foi o que disseram.

O problema da vida marginal é que ela me cansa. O problema da cerveja é que ela precisa chegar ao fim e você precisa voltar a viver e a pensar e a refletir sobre suas escolhas, seus relacionamentos passados, suas notas acadêmicas, esse é o trabalho que eu quero? E a política? Em quem diabos eu vou votar para prefeito?

Será que ela volta?

O problema de não estar sóbrio é que, eventualmente, você estará sóbrio. Ou a sete palmos do chão. O que é quase a mesma coisa. O problema de morrer por amor é que você não morre, de fato, por amor.

Por fim estão as coisas que eu queria te contar: é fácil e difícil sem você. O que mais incomoda é a insônia.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Efeito Colateral

antes de eu ser criança e ser bicho
muito antes do mundo ser revestido
de cores e listras
relutava com um buraco no pulmão
o chute que levava dos primos mais velhos
o medo da escuridão
e dos passos da madrugada
eu via o décor e suas arrumações
e no meio da luz com os cabelos
que lhe tampam tudo
até mesmo a alma
a gritar ininterruptamente
eu me apaixono lentamente
eu disse
e sofro
pouco a
pouco

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

A Selva de Sílvia



"Puta merda, Ed!"

Na mesma hora em que ela me gritou, arrebentei o dedo na faca. Não consegui nem responder. Fiquei estático, olhando o sangue fresco se misturar com a manteiga, que por sua vez já infiltrava os pequenos buracos do pão de forma meio quente, meio frio. Meio quente, meio frio. Meio quente, meio frio. Ela me gritou de novo. Eu fui. Parei na porta da sala e observei, ainda com o dedo cortado enfiado na boca. Três sensações me invadiam: o arrepio, que a causa era a janela entreaberta; uma cortada no peito, mas eu ainda não sabia o motivo; o sangue sugado, que me provocava quase um surto psicótico.

Ela estava confortavelmente utilizando-se de todo o espaço do sofá, os olhos vidrados na televisão, a cor azul infestando toda a sua face. Demorou ainda alguns segundos para me perceber de esguelha. Quando me viu, fez aquela expressão maravilhosamente assustada e, por um segundo, me esqueci de todos os nossos problemas. Andei vagarosamente e me sentei ao seu lado e acompanhei a televisão.

Eu que nunca gostei de ir à missa agora sentia até um aperto no peito e sem querer meu subconsciente pedia piedade pra Deus e pra todas aquelas pessoas. E pedia piedade pra mim também, ainda segurando o dedo ensanguentado, sentado do lado daquela gostosa que me namorava há três anos e eu não sabia bem o porque de ela não largar o osso. Lentamente, nossos dois corpos, aterrizados na tragédia que a televisão nos contava, os olhos derretendo como manteiga, os braços se entranhando um no outro, o mundo caindo e a gravidade falhando aos nossos pés. E a TV chiava, chiava, chiava...

"Tá vendo, Ed?"

Ela enfia a mão na minha perna. Ainda nem se deu conta da sujeira que o sangue havia feito. Marcas na calça, na blusa, na boca, líquido viscoso, gosto de ferro e eu com o dedo metido na boca. E a Sílvia agarrada na minha perna. Como um quebra-cabeça defeituoso. O pescoço dela reto, entretido, os olhos abertos e arregalados. Eu com os ombros quase em noventa graus, me deliciando em seus detalhes, observando cada um de seus poros malignos, cheios de vontade e a única certeza; a maior das certezas; um tesão imensurável. O mundo estava acabando, as pessoas estavam morrendo e a única coisa que eu queria era trepar com Sílvia.