quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Anna

Eu conheci Anna em 1997 e ainda não sei por que tive que deixá-la. Naquele ano meu irmão mais novo acabara de completar oito anos e eu terminava de assistir ao documentário "A Invenção da Psicanálise" e me apaixonava por Pink Floyd. Anna era dois anos mais velha do que eu e usava moletons listrados, muitas vezes coloridos, dispersos entre verdes e pretos, amarelos e laranjas. O cabelo desgrenhado, muito mal escondido atrás de um chapéu preto, marcado pela poeira de seu quarto bagunçado, infestado de mesquinharias, vídeo cassetes, óculos escuros, pornografias. Eu gostava de Anna pela sua boca perfeita, os olhos muito bem posicionados, secretos, decorados pelo seu nariz alinhado, arrebitado, concreto. Anna não era muito bem vestida, digo, arrumada, padronizada, mas chamava atenção pela tinta de baixo das unhas, as calças rasgadas, seus sapatos manchados. Quando se sentia chique, usava um blazer por cima de uma camiseta dos Doors. Eu a chamava de Mia Wallace e ela me perguntava se eu estava carregando alguma droga ilícita dentro do meu paletó. Ela me chamava de Marlon Brando e eu ficava puto de nunca poder ser o personagem. Ela me incentivava a escrever, minhas obras escassas, meus pensamentos fúnebres, toda aquela porcaria sobre sindicatos, papéis amassados, jornalistas, revolução. Anna adorava. Eu não.

Eu conheci Anna em um baile de formandos, lá pelos meus dezoito anos, cuecas sujas no cesto, má caligrafia, muitos alucinógenos. Naquela época nada era tão bonito quanto o sexo, cama esparramada, Anna na minha cama. Ela me contava de sua vida de forma cálida, tocando as pontas dos dedos, suando em minhas mãos, apalpando meu íntimo, me forçando, me chutando, me sangrando por todas as partes de meu corpo, aquelas pequenas emoções, tão frágeis. Eu não me desvencilhava, não fugia, só a beijava e jurava que seria eterno aquele nosso amor, nossa liberdade, nossos corpos magros direcionados para um grande romance, um filme de Hollywood, todas aquelas câmeras nos filmando. Soube alguns anos mais tarde que não era nada, não dava nem um best-seller, não havia set de filmagens, nosso caso não valia nem alguns trocados. Nos envolvemos com decepções amorosas, o tipo de prostituta que não devemos mencionar. Anna nunca disse se me amou. Nunca perguntei a Anna se ela me amava. Acho que tudo era pequeno demais para nossas almas, pequeno demais para todos aquelas sonhos, a minha infância ainda se espelhava nos meus olhos, o lápis preto em volta de suas pálpebras me mostrava uma vontade sanguinária de conhecer todo o resto do mundo e seu álcool, sua podridão, sexo, diferentes casas, diferentes homens, eu não era suficiente para Anna. Anna não era suficiente para mim.

Eu conheci Anna há 6 anos, antes de toda aquela porcaria, 11 de setembro, poluição, casas com alarme. Eu quase não bebia, mas fumava demais. Anna gostava de dançar com desconhecidos em bares à beira de estradas mal faladas, ela se equilibrava entre garrafas e mãos bobas, sorrisos estrábicos e olhares débeis, todo aquele suor bêbado, mesas de sinuca esparramadas pelo cômodo. Eu cuidava da madrugada de Anna e a mostrava o caminho de volta para sua cama. Eu nunca a amei, mas me doei inteiro para a sua felicidade, seu maldito conforto. E agora estou sem nada. Não corto o cabelo há meses, larguei a faculdade no último período, comecei a escrever três livros no último ano. Tudo que eu vejo é Anna em meus sonhos, meus olhos, minha cama amarrotada, a barba da semana passada, o café amargo. Trouxe algumas garotas para casa, mas todas elas me sufocaram, me queimaram, acenderam em mim um ódio profundo, um remorso. Anna, não sei por que você teve que ir embora.

Eu me despedi de Anna em 2001 e ainda não sei por que tive que deixá-la. Naquele ano meu irmão mais novo ganhava seu primeiro Game Boy e eu já havia desistido de ser alguém na vida e ia ao cinema três vezes por semana. Anna havia pintado o cabelo de vermelho e agora terminava o curso de Francês e largava lentamente seu vício por cigarros de palha. Naquele ano, Anna começou a pintar quadros e arrumou um namorado. Não era eu. Anna gostava de mim pela minha cicatriz acima da sobrancelha, o cabelo mal cuidado, os óculos de grau um pouco tortos, minha cara de tarado. Eu não gostava de calças largas e me sentia mal com camisetas amarrotadas. Ela dizia que eu chamava atenção pelo modo como eu falava, gesticulava, sempre jogava o lixo na rua, não tinha escrúpulos, era um mal educado. Anna me chamava de querido e eu fritava ovos com bacon enquanto ela dançava pela cozinha, me dizia que eu era seu melhor amante, seu confidente, seu melhor sexo, perfume, nunca fomos nada sério. Eu a incentivei a partir, atuar em outras peças que não as minhas, ser melhor atriz do que na minha cama, ela me chamou de amor, deu um beijo, me abraçou e então, partiu.